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Gaita-de-fole
transmontana da colecção do Museu da Música de Bruxelas (anterior a
1982). Presume-se que será da autoria do artesão Rodrigo Fernandes, de
Miranda do Douro; notem-se os entalhes característicos e o fole de
cabrito inteiro. Os tubos serão em madeira de enguelgue
(foto: cortesia do Museu
da Música de Bruxelas).
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Trás-os-Montes
(Portugal) |
A Gaita-de-fole de Trás-os-Montes (também
chamada de "Gaita Transmontana" ou "Gaita Mirandesa") é tradicionalmente
de construção artesanal e partilha semelhanças morfológicas com as
gaitas-de-fole de Sanabria, Aliste ou Zamora, comarcas espanholas
fronteiriças. Possui um
ponteiro de furação larga, com digitação aberta, preso no pescoço de um
fole de cabrito, assim como um bordão de grandes dimensões, preso na
pata direita, e um assoprete, preso na pata esquerda. A sua tonalidade
pode oscilar entre Si, Si bemol e Lá, dependendo dos artesãos, e exibe
intervalos próximos dos usados na música da região, sobretudo na flauta
pastoril ("Fraita", em Mirandês) e vocal.
Construção
As práticas musicais e os próprios materiais de construção dos
instrumentos estão profundamente envolvidos no contexto agro-pastoril
desta região.
As técnicas de construção deste instrumento eram, até há bem pouco
tempo, artesanais, com os artesãos (eles próprios gaiteiros, por
vezes) a tornear as peças em tornos de pedal, perfurando-as com brocas e
ferros fabricados para o efeito por ferreiros, ou adaptando para essa
função material já existente.
Esse era também o modo como em toda a Europa se faziam as diferentes
gaitas-de-fole, antes da introdução de técnicas industriais.

Réplica
moderna de Gaita-de-fole de Trás-os-Montes
Construção: Victor Félix e
Mário Estanislau (Associação Gaita-de-foles), 2004, Portugal (baseada
nos modelos dos artesãos mirandeses Rodrigo Fernandes e Manuel Paulo
Martins). Materiais: tubos em madeira de buxo, com entalhes decorativos
e fole de cabrito inteiro. Tonalidade: Sib m; Digitação: aberta. Dois
tubos sonoros: bordão cilíndrico de palheta simples e ponteiro cónico
com palheta dupla.
Actualmente começam a surgir alguns artesãos que procuram construir
gaitas transmontanas com as ferramentas industriais hoje disponíveis:
tornos eléctricos, ferramentas de precisão, ferros de furação em aço
temperado, etc.
Isso tem levado ao surgimento de gaitas deste modelo que têm
características mais estáveis e precisas do que os modelos mais antigos
- inclusive, já permite que várias gaitas transmontanas afinem e toquem
em conjunto, mantendo as suas características tímbricas e musicais
únicas.
A Gaita-de-fole na foto acima é uma réplica de modelos transmontanos
construída na oficina da Associação Gaita-de-Foles, por Victor Félix e
Mário Estanislau, a partir dos modelos dos artesãos transmontanos
Rodrigo Fernandes e Manuel Paulo Martins.
O modelo da foto foi construído com técnicas de construção modernas e
possui uma escala diatónica menor natural - uma opção que procura
conciliar o timbre original destas gaitas, com uma afinação próxima
(tanto quanto possível), dos modelos tradicionais, tentando torná-la
minimamente temperada.
Foi construída em madeira de buxo e possui um fole de cabrito inteiro.
As palhetas simples e duplas são de cana ("Arundo Donax").

Um aspecto
detalhado da copa de um Roncão. Os entalhes decorativos com padrões
geométricos são uma das imagens de marca das gaitas transmontanas.
(foto: André
Ventura).
Afinação
Hoje em dia mantém-se um
debate intenso sobre qual será a escala "verdadeira" dos
instrumentos desta região: fundamentalmente diatónica menor natural,
menor harmónica, menor melódica, maior ou até uma escala natural
não-temperada.
Segundo Alberto Jambrina Leal
(1), é possível encontrar exemplares
afinados com uma 3ª neutra e em várias ocasiões, com o 6º e 7º graus
neutros, com quase 1/4 de tom abaixo - o que ao ouvido humano dá a
sensação de escala menor, com uma subtónica em vez de sensível e de 3º e
6º graus baixos. Estes micro-intervalos podem encontrar-se nos Romances
(género épico-lírico cantado, com provável origem medieval), prova da
influência mútua das práticas musicais e da presença de um sistema
modal, mais do que tonal.
Apesar da diversidade de opiniões, é preciso lembrar um facto
importante: este era um instrumento artesanal, que por isso admitia
inúmeras variações em vários exemplares, conforme o gosto dos artesãos e
dos gaiteiros que os tocavam.
Apesar de ser identificável um padrão minimamente comum em muitos
instrumentos de diferentes artesãos (sobretudo na sua morfologia), os
exemplares recolhidos em várias campanhas etnográficas e as muitas
gravações existentes mostram uma grande variedade de afinações, o que
torna a existência de um "modelo único" algo difícil de comprovar.
Os Gaiteiros
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José
Maria Fernandes, Gaiteiro transmontano de Urrós, Mogadouro.
(foto: André Ventura). |
Mas a Gaita-de-fole transmontana conserva
ainda alguns aspectos das tecnologias pré-industriais e dos saberes a
elas associados: tradicionalmente eram os próprios gaiteiros que
procuravam e escolhiam as madeiras adequadas, seleccionavam o cabrito do
qual se fazia um fole e não raras vezes, fabricavam as suas próprias
palhetas, para além de fazerem depois os entalhes decorativos nas peças
da gaita, com uma mão habilidosa e uma simples navalha.
O típico gaiteiro transmontano assume, portanto, a figura do "Gaiteiro
total": é ele que afina e faz a sua própria gaita, aprende e ensina
repertório e técnicas e naturalmente, é ele o "rei da festa", quando é
solicitado para animar os bailes e festas comunitárias.
A formação mais habitual é o grupo de Gaiteiro, Caixa e Bombo, sendo que
o gaiteiro abre as festas sazonais com Alvoradas, acompanha
habitualmente as procissões e as danças de "L's Palos" (mais conhecidos
por "pauliteiros").
Esta gaita está a tornar-se bastante popular, assistindo-se em
Trás-os-Montes a uma revitalização crescente das práticas musicais a ela
associadas. Curiosamente, também fora da área geográfica transmontana
existe um certo público urbano que se interessa cada vez mais por este
instrumento e que está apostado na sua revitalização.

Outra réplica de
uma Gaita-de-fole, em madeira de Freixo, com os habituais entalhes
decorativos
(artesãos Victor Félix e Mário Estanislau).
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25
Aberto (Póvoa, Miranda do Douro), Gaita-de-fole: Paulino Pereira
João - Caixa: Paulino José Raposo - Bombo: Domingos Alfredo Falcão.
Gravação de Domingos Morais, 1985.
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Carvalhesa (Moimenta de
Vinhais). Gaita-de-fole: Carlos Gonçalves - Pandeiro: Carmo Garcia -
Ferranholas: Iria dos Anjos. Gravação de Ernesto Veiga de Oliveira,
1963.
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Alvorada de Rio de Onor (Rio
de Onor, Bragança). Gaita-de-fole: João Prieto Ximeno - Percussão:
João Manuel Fernandes. Gravação de Ernesto Veiga de Oliveira, 1963.
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Alguns dos mais
conhecidos tocadores de gaita-de-fole transmontanos, nos anos 60: Carlos
Gonçalves (Moimenta de Vinhais, Bragança), João Prieto Ximeno (Rio de
Onor, Bragança), Manuel Paulo Martins (Vale de Mira, Miranda do Douro) e
Manuel Sam Pedro (Travanca, Mogadouro). Fotos: Instrumentos Musicais
Populares Portugueses, Gulbenkian, 2000.
Os géneros musicais frequentemente associados a esta gaita são as danças
como o Baile Agarrado, Baile Picado, Jotas, Murinheiras, Carvalhesas,
mas também os Lhaços que acompanham as danças dos pauliteiros, nas
aldeias do concelho de Miranda do Douro.
Para além da música de dança, também é frequente que o gaiteiro
seja chamado a acompanhar funções rituais, como as alvoradas,
passacalhos, rondas e procissões.
Gaiteiros transmontanos famosos foram recolhidos por vários etnógrafos e
existem numerosas gravações que hoje servem de inspiração para a
recuperação desse instrumento e do seu repertório - entre os mais
conhecidos, contam-se os nomes de Alexandre
Augusto Feio, José João da Igreja, Manuel Sampedro, Manuel Paulo
Martins, Nascimento Raposo, Paulino Pereira João, João Prieto Ximeno,
Carlos Gonçalves, Rodrigo Fernandes, entre outros.
Hoje em dia, para além dos
gaiteiros "tradicionais", vão surgindo também novas formações que
procuram fazer a continuação e reinterpretação dos repertórios e
instrumentos transmontanos, como por exemplo, os grupos Gaiteiros de
Lisboa, Galandum Galundaina, Gaitafolia ou Lenga-lenga.

Da esquerda para a
direita: Galandum Galundaina, Gaitafolia e Lenga-lenga, exemplos de
novos grupos que procuram recuperar as gaitas transmontanas.
(1)
Jambrina Leal, Alberto, in "Gaita-de-Foles"
- (revista da APEDGF) ; nº1 - Abril de 2001 - Pp 4-6.

Outras
Gaitas-de-fole
Texto: Miguel Costa (Associação Gaita de Foles), 2006 - Direitos Reservados
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