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"Além de salvar do esquecimento ritmos e melodias ancestrais, o fundador da editora Sons da Terra acalenta o objectivo de conservar em disco a simples atmosfera sonora das aldeias.
Mário Correia é um homem apressado; há um tesouro musical escondido nas serranias do Nordeste transmontano e há que salvá-lo antes que o esquecimento e a "litoralização" do país o sepultem de vez. Os seus propósitos são claros: a tradição oral é frágil e está em perigo de extinção, sendo por isso indispensável guardá-la num registo mais fiável e duradouro.
Desde que fundou, há quatro anos, a editora Sons da Terra, este entusiasta das músicas tradicionais (que é também um dos responsáveis pela escolhas musicais das Noites Celtas que hoje arrancam no Porto) construiu já um invejável património de dezoito discos, todos eles preenchidos com melopeias e danças de interpretação autóctone e que surgem parcialmente referenciados no livro "Raízes Musicais da Terra de Miranda", que acaba de ser publicado juntamente com um disco antológico. No seu trabalho de recolha, Mário Correia traz-nos à memória o etnomusicólogo corso Michel Giacometti. É que também Correia, acompanhado da sua inseparável maquinaria de gravação, se deslocou às aldeias mais recônditas, procurando surpreender no seu ambiente natural os
últimos guardiães de um saber ancestral.
Foi assim que descobriu, por exemplo, a mirandesa Clementina Rosa Afonso, que, com a sabedoria conferida pelos seus 68 anos, foi capaz de estar durante seis horas e sem pausas a interpretar cantigas de imemorial origem e a recordar estórias da sua infância; "ela tem uma memória prodigiosa", comentou o investigador, que teve alguma dificuldade em anular no registo sonoro as pequenas armadilhas criadas pela espontaneidade, como os apartes ou comentários da assistência. Na sua peregrinação, Correia foi também ao encontro do gaiteiro Manuel Paulo Martins, de 89 anos, considerado um verdadeiro "primus inter pares" do reduzido escol de virtuosos da gaita-de-foles e cujas melodias sairão brevemente em disco.
Seja como for, a gaita-de-foles é um instrumento quase secreto, cujo domínio foi durante séculos guardado a sete chaves. "Ninguém ensinava nada a ninguém", conta Mário Correia. Cada novo gaiteiro que aparecesse sê-lo-ia sempre por tentativa e erro, sem mestre a apontar-lhe o caminho, limitando-se a imitar à socapa os anciãos. Apenas recentemente as coisas começaram a mudar, como explica o fundador da Sons da Terra, com o aparecimento da primeira geração de gaiteiros "que sabem ler uma partitura", embora transpor a música daquele instrumento para o pentagrama seja uma tarefa quase impossível, devido às subtilíssimas "nuances" de tom que fazem gato-sapato da escala convencional.
Esse processo de democratização poderá conhecer agora um novo impulso graças ao futuro Centro de Música Tradicional do Planalto Mirandês, um equipamento que Mário Correia se prepara para instalar na vila de Sendim, onde promoveu, no Verão passado, um bem sucedido Festival Intercéltico. Com o apoio da junta de freguesia e da Delegação Regional de Cultura do Norte, será aproveitado um edifício bem no centro da vila para a colocação de um arquivo fonográfico e bibliográfico e para a instalação de uma escola de...gaita-de-foles. Como referiu Correia, o objectivo é, numa primeira fase, despertar a curiosidade das pessoas em "tocar umas modas" naquele instrumento tradicional, para, mais tarde, dar possibilidade a outros de seguirem estudos musicais mais
aprofundados. Entretanto, as pesquisas do investigador tenderão cada vez mais a incidir na recolha de "paisagens sonoras", centrando os discos não tanto no intérprete mas no ambiente. Talvez assim possa Mário Correia lançar uma resposta aos vindouros para a questão primordial: "Que som tem uma aldeia?". "
Fonte: Diário de Notícias
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